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EMERGIA BELO HORIZONTE
Emergia Belo Horizonte acontece dentro da MIP 2 – II Manifestação Internacional de Performance, realizado pelo CEIA – Centro de Experimentação e Informação em Artes. É a segunda edição do evento, pioneiro no Brasil em fomentar e desenvolver a linguagem da performance, com a participação de artistas nacionais e internacionais, que apresentam seus trabalhos, realizam workshops, palestras e debates que propõem trocas e questionamentos acerca do fazer da performance. Estou contente em poder ser testemunha ocular de Emergia Belo Horizonte. Miguel Rodrigues Sepúlveda já esteve nessa cidade antes, quando realizou o projeto CONTEXT 3, em colaboração com o artista brasileiro João Castilho – trabalho esse que gerou um livro. Agora, convidado a integrar a intensa semana de programação de performances da MIP, faz Emergia numa tarde de quarta-feira, ensolarada e quente.
O evento ocorre no Espaço 104, um local onde por muito anos funcionou uma fábrica de tecidos e que agora transforma-se em espaço cultura. Há muitos pedreiros, eletricistas e outros funcionários trabalhando no local, permeado constantemente por ruídos de máquinas e outros característicos de construção em andamento. Materialmente, trata-se de um imenso galpão, com mais de 1000 metros quadrados e um pé direito de 7 metros e altura. Os espaço é dividido em grandes salas, sendo todas elas ligadas por um largo e extenso corredor (mais de 100 metros de comprimento e cerca de 7 metros de largura). Nesse corredor acontece Emergia. O local é visto por todas as outras salas, podendo também ser vislumbrado por transeuntes que passam na entrada do Espaço 104. Por ser um lugar de passagem, é sempre atravessado por técnicos, curiosos, artistas e público que se aglomera. Há utilização de equipamento de iluminação potente, posicionado no chão, ao redor do local onde a performance ocorrerá.
A escolha dos performers se deu de maneira diversificada, à moda brasileira. Dois deles, Ana e Tábata, são participantes de workshops na MIP, e se apresentaram voluntariamente para integrar Emergia. Outro é Jorge, um artista plástico que também se interessa por performance. Ele ficou radiante com o convite para participar em Emergia. O quarto participante não é performer nem é pessoa ligada às artes, mas topou participar do projeto seduzido pelo cachê de R$50,00 que Miguel pagou a todos os colaboradores.
E assim, formado o time, se inicia a pintura nos corpos. Nesse momento é como se os símbolos já ganhassem vida. As pessoas presentes se aglomeram em torno de Fernanda, que pinta sem qualquer solenidade, com gestos precisos. O posicionamento do corredor é dirigido por Miguel, que coloca-os no local mais apropriado para a documentação.
A primeira imagem a ser pintada é de Santos Dumont.Alberto Santos Dumont nasceu em 1873 e foi um inventor brasileiro. Ele é motivo de orgulho nacional, por ter sido o primeiro homem a conseguir levantar vôo num aeroplano, sem a ajuda de outros artifícios. Em 1906 ele voou cerca de 60 metros com seu 14 Bis, em Paris. Menos de um mês depois, em 12 de novembro, repetiu o feito e, diante de uma multidão de testemunhas, percorreu 220 metros a uma altura de 6 metros. Apesar disso, a maioria dos países do mundo considera os Irmãos Wright como os inventores do avião, por uma decolagem ocorrida em 17 de dezembro de 1903, com o uso de uma catapulta. Por isso, ao mesmo tempo em que é venerada, a figura de Santos Dumont também é motivo de frustração para os brasileiros. Em Emergia, o rapaz que tem sua imagem pintada nas costas parece correr como se quisesse levantar vôo, como se os poderes de Santos Dumont o fizessem capaz de tal proeza. Corre em ritmo acelerado, e após cerca de 17 minutos, a imagem do ídolo já não passa de uma mancha de tinta derretida.
A segunda imagem é a da CBF – Confederação Brasileira de Futebol. Essa imagem é idealizada no país quase como um símbolo sagrado. No Brasil, país do futebol, realizar uma ação esportiva (correr) com o objetivo de desfazer o seu símbolo, é uma imagem de significado. Jorge corre muito, mas parece não suar com facilidade. É como se o símbolo resistisse a se desfazer. São necessários quase 40 minutos para que a imagem se derreta, causando um impacto silencioso na platéia; como um fim de partida sem gol, como um 0 x 0.
A terceira imagem é uma imagem religiosa, Nossa Senhora Aparecida, a santa padroeira do Brasil. A imagem é forte, é capaz de evocar toda a mistura que caracteriza a população e a cultura brasileira: uma santa negra aceita pela igreja católica, pintada nas costas de uma brasileira de origem japonesa. Tábata corre rápido, sem pausa, mas não há sinal de suor. Já se passam dos 50 minutos e apenas uma lista de tinta escorre. A garota tem que parar, pois começa a sentir-se mal, pressão baixa, falta de ar. Depois da corrida ela me diz que durante a ação começou a rezar. Parece que a santa não ajudou.
A quarta imagem de Roberto Carlos, o maior ídolo musical de todos os tempos. Roberto Carlos é um cantor, mas é como se fosse um santo, um mito do futebol, ou um grande aviador. Ele reúne em si todas as qualidades que o brasileiro admira: é genial, mas simples e popular, suas letras falam de amor, de amizade, de política e de paz. É rico, porém humilde, tem o costume de dar rosas às pessoas que vão a seu show, cria uma relação realmente próxima com seu público. Talvez seja por isso que Roberto Carlos é chamado no Brasil de “O Rei”. Ao ver sua imagem derreter, algumas pessoas na platéia assobiam suas músicas, timidamente, como se tentassem desacelerar aquele momento, como se tentassem manter a imagem do Rei intacta, e como se fosse um crime cantar enquanto seu Rei é dissolvido. No entanto, o Rei também se transforma em mancha de tinta, ficando apenas a memória de sua face e a canção rondando nas mentes dos presentes ali.
Ao final de cada corrida, quando se alcança a dissolução das imagens e a ação parece estar terminada para a platéia, talvez seja o momento em que o trabalho adquira maior grau de intensidade e intimidade. Com delicadeza e cuidado, Miguel e Fernanda retiram a tinta das costas de seus participantes. Converso com Miguel e pergunto por que a preocupação de limpar os participantes, uma vez que eles aceitaram ter as costas pintadas, tarefa pela qual inclusive foram remunerados. Ele responde: tomo emprestado corpos para que a arte possa se concretizar, então tento devolvê-los ao mundo da maneira como chegaram. O interessante é que, como as imagens que se dissolvem e se transformam, também os corpos ali se transformam, seja interna ou externamente. Por mais que se tente retornar ao estado original, esse retorno é impossível: as marcas da ação ali realizada permanecem. Estão vivas e presentes na platéia, no performer, no espaço, na documentação, no tempo. Assim como a iconografia ganha presença ao se dissolver, também o ato de limpar a tinta torna a ação que ali ocorreu ainda mais presente. É quando EMERGIA se completa.
Christina Fornaciari é Mestre em Performance
pela Queen Mary’s University of London.z
Vive e trabalha em Belo Horizonte
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EMERGIA BELO HORIZONTE
Emergia Belo Horizonte takes place inside MIP2 (II International Manifestation in Performance), an event organized by CEIA (Centre for Experimentation and Information in Arts). I am happy to be able to participate and follow through the second edition of the event, and particularly for witnessing Emergia in Belo Horizonte. Miguel Rodriguez Sepulveda has already been working in Belo Horizonte at the project CONTEXT; work that generated a book and which was carried out in collaboration with the Brazilian photographer João Castilho. Now Miguel returns to Belo Horizonte, invited to present Emergia in a hot and sunny Wednesday afternoon.
The event takes place in “Space 104”, a place where a fabric factory used to function for many years, and which now is been converted into a cultural space. There are builders, electric technicians and other workers laboring around the place, which is filled up with machine noises and other sounds commonly heard in sites on construction. The warehouse is very large, with more than 1000 square meters and a ceiling more that 7 meters high. The space is divided into big rooms, all of them being connected by one long corridor – with more than 100 meters long and about 8 meters width. It is in this corridor that Emergia occurs. It can be seen by all other rooms and can also be viewed by street passers-by. Since the corridor is a way of passage, many people cross the space all the time, from curious to artists and workers. There is a heavy light equipment placed on the floor, around the place where the runners will be.
The choice of the performers followed a Brazilian pattern: in a mixed way. Two of them, Ana and Tábata, are participants of MIP’s workshops and they have offered themselves to be in Emergia. Another participant is Jorge, a visual artist who is also interested in performance, he was glad to be invited to participate in Emergia. The fourth participant is not a performer and is not related to arts; but he accepted to be in Emergia seduced by the 50 reais fee that Miguel has paid to all of the collaborators.
And this way the team was formed. The painting on the bodies is initiated. At this point, it is as if the symbols already gained life. The people in the place gather around Fernanda, who paints without any formalism, with precise gestures. The position of the runner is directed by Miguel, who places them in the more appropriate place having in mind the best documentation.
The first image to be painted it of Santos Dumont. Alberto Santos Dumont was born in 1873 in Brazil and was an inventor. He is a reason for pride in the country, for he was the first man to be able to fly in an air plane without the aid of other artifices. In 1906 he flew about 60 meters with his “14 bis” in Paris. Less than a month later, he would repeat the flight in front of a big crowd, this time flying 220 meters, 6 meters high. In spite of that, most of the countries consider the Brothers Wright as the inventors of airplane, for a flight that they managed in December 1903, using a catapult. For this reason, at the same time the image of Santos Dumont is venerated in Brazil, it is also a reason of frustration for the Brazilians. In Emergia, the boy who carries his image on his back seems to run so quickly as if he was trying to fly, as if Santos Dumont’s powers would enable him to do more than running. After 17 minutes of quick jogging, the idol’s image is not more that a black mark of dissolved paint.
The second image is of CBF – Brazilian Football Confederation. This image is idealized in the country almost as a sacred symbol. In Brazil, where football is almost a religion, to make a sportive action (to run) aiming to dissolve its symbol, is a image with a powerful meaning. Jorge runs a lot, but seems no to seat easily. It is as if the symbols resisted to dissolve. It is necessary almost 40 minutes of run in order to melt the painting, fact which causes on the audience a silent impact: like the end of a game with no goal, 0 x 0.
The third image is a religious image properly, Nossa Senhora Aparecida, Brazil’s saint of devotion. The image is strong, able to bring about all the miscegenation characteristic of Brazilian population and culture: a black saint accepted by catholic religion, painted on the back of a Brazilian girl with Japanese origins. Tábata runs quickly, nonstop, but there are no traces of sweat. It’s been 50 minutes since she started and only appears a thin line of paint dropping at her back. The girl must stop because feels bad, her blood pressure drops suddenly, she can’t breathe. Afterwards, she tells me that during the action she was praying to the Saint. It seems like the saint did not help.
The fourth image is of the Singer Roberto Carlos, the biggest musical idol of all times in Brazil. He is a singer, but it is also as if he was a saint, or a famous football player, or an inventor. He gathers in himself all the qualities admire by Brazilian people: He is genial, but simple and popular; his lyrics talk about love, friendship and politics, and peace. He is rich, but humble, has a close relationship to his fans. Maybe that is why Roberto Carlos is called in Brazil “O Rei” (translated as The King). While seeing his image melting, some people sing his songs, shyly, as if trying to slow down that moment, as if trying to keep the image of their King intact, and as if it was a crime to sing while his idol is being dissolved. However, even the Rei becomes a black dot on someone’s back. What stays is the memory of its face, and the song spinning around the minds of all those who are there.
At the ending of each run, when the melting is achieved and the action seems to be finished for the audience, it is maybe the moment when the work acquires major degree of intimacy. With care and gentleness, Miguel and Fernanda take off the paint from the participants’ backs. I speak to Miguel and ask him why the worry to clean up the participants, once they have accepted to have their backs painted, even being paid for that. He answers: I only borrow their bodies in order to make my art. So I try to give them back into the world as they came to me. The interesting fact is that, as the images melt and change, also the bodies get out of the process differently, internal or externally. Even if Miguel tries to recover their original state, this return is impossible. Somewhere in the performers, in the space of in the minds of those who witnessed Emergia, the marks of the action are permanent. As the iconography gains presence by melting, also the act of cleaning the bodies afterwards also make the action more present. It is when Emergia is completed.
Christina Fornaciari,
MA in Performance by Queen Mary University of London,
lives and works in Belo Horizonte.